É certo que o advento da Lei Complementar nº 101, de | |
4 de maio de 2000, representou um avanço significativo | |
nas relações entre o Estado fiscal e o cidadão. Mais que | |
isso, ao enfatizar a necessidade da accountability, atribuiu | |
5 | caráter de essencialidade à gestão das finanças públicas na |
conduta racional do Estado moderno, reforçando a idéia de | |
uma ética do interesse público, voltada para o regramento | |
fiscal como meio para o melhor desempenho das funções | |
constitucionais do Estado. | |
10 | |
Percebe-se que os dois temas [a correlação entre metas | |
e riscos fiscais e o impacto dos déficits públicos sobre | |
as futuras gerações] se vinculam à função prospectiva | |
da noção de responsabilidade fiscal. Enquanto o primeiro, | |
15 | normalmente, se adstringe a situações futuras próximas, o |
segundo vincula-se a situações futuras a longo prazo. | |
Portanto, além de a responsabilidade fiscal cumprir o | |
papel de proporcionar recursos de imediato a fim de que o | |
Estado realize as funções a que constitucionalmente está | |
20 | vinculado, busca controlar a situação orçamentária a fim |
de não comprometer nem o futuro imediato, muito menos o | |
futuro mais distante. | |
(...) | |
O estudo das relações entre déficits fiscais e seus efeitos | |
25 | nas gerações futuras, ao menos na economia, não é |
novo. Economistas clássicos e contemporâneos – dentre | |
eles David Ricardo, Martin Feldstein, James Buchanan e | |
Keynes – trataram do assunto sob perspectivas diferentes. | |
A reflexão jurídica sobre o assunto, contudo, não se tem | |
30 | mostrado tão farta quanto aquela encontrada na economia. |
Isso se deve, talvez, à associação feita ao tema dos efeitos | |
na utilização de recursos entre gerações especificamente no | |
campo ambiental – fortalecida, principalmente, após a década | |
de 70, quando o movimento ambientalista passou a formular | |
35 | um discurso jurídico mais sólido, angariando adeptos |
das mais variadas formações, em diversas partes do planeta. | |
Não pode, no entanto, a noção jurídica de efeitos entre | |
gerações se restringir à temática ambientalista. Obviamente, | |
ela possui contornos bem definidos naquela área, uma | |
40 | vez que a própria ética ambientalista se funda na distribuição |
de recursos entre gerações, alicerce para a sobrevivência | |
da própria humanidade. | |
Mas a alocação de recursos públicos através do equilíbrio | |
orçamentário também se mostra indispensável para | |
45 | que as gerações futuras não sejam privadas de políticas |
públicas propostas para serem minimamente efetivas, por | |
falta de disponibilização orçamentária suficiente. Isso leva a | |
crer que um dos objetivos da idéia de responsabilidade fiscal | |
é preservar a capacidade de financiamento de políticas | |
50 | públicas para as futuras gerações. |
Do mesmo modo que a ética ambientalista tem enfatizado | |
que os recursos ambientais não são inesgotáveis, | |
colocando-se a possibilidade de as gerações presentes virem | |
a exauri-los, privando as futuras gerações da própria | |
55 | existência, não é menos razoável pensar que os recursos |
públicos, também exauríveis, podem vir a comprometer o | |
desenvolvimento humano e a existência de grupos menos | |
favorecidos, carentes da ação estatal que vise a minorar as | |
desigualdades. | |
60 | Percebe-se que os gastos públicos normalmente beneficiam |
muito mais as gerações atuais que as gerações futuras. | |
Entre outros fatores, isso se deve ao fato de que as decisões | |
políticas tendem a visualizar um período estreito de tempo a | |
fim de se concretizarem. Natural – mas não ideal – que assim | |
65 | seja. Tomadores de decisões políticas freqüentemente |
ficam adstritos ao período de seus mandatos, uma vez que | |
percebem que os efeitos de suas decisões são sentidos mais | |
a curto que a longo prazo. Acrescente-se a isso o fato de | |
que muitos eleitores ignoram completamente a complexidade | |
70 | das decisões, não percebendo ou relevando o limitado |
escopo de tais decisões, não se prolongando no tempo e | |
beneficiando, primordialmente, as gerações atuais. | |
Pode-se argumentar, a contrário, com três situações. | |
A primeira delas é de que não se pode estabelecer uma | |
75 | relação tão rígida no sentido de que déficits públicos terão |
o efeito prolongado a ser sentido pelas gerações futuras. | |
Um exemplo disso seria o famoso “erro de Malthus”. Ao | |
afirmar que a produção de alimentos cresce em progressão | |
aritmética, enquanto o aumento da população se dá em | |
80 | progressão geométrica, Malthus não levou em consideração |
a evolução tecnológica como transformadora da capacidade | |
de produção de alimentos, pressupondo mesmo uma sociedade | |
estanque. | |
Nesse sentido, seria possível afirmar que poderiam surgir | |
85 | novas formas de alocação de recursos que eliminariam |
os déficits, não necessariamente impondo ônus adicionais | |
às gerações futuras. | |
Esse raciocínio baseia-se, contudo, numa falsa comparação. | |
Primeiramente, porque a alocação de novos recursos | |
90 | nada tem a ver, em princípio, com o impacto tecnológico. |
O avanço deste não acarreta necessariamente impacto positivo | |
daquela. | |
Um segundo fator diz respeito ao argumento de que a | |
existência de déficits públicos pode promover o desenvolvimento | |
95 | nacional, o que a experiência brasileira não parece |
confirmar. | |
O terceiro argumento contra a idéia de que déficits imporiam | |
ônus às gerações futuras é o de que não se sabe | |
qual será a postura das futuras gerações quanto aos bens | |
100 | materiais. Uma vez que uma postura antimaterialista, já |
existente na contemporaneidade, pode se disseminar para | |
uma grande parte da população dentro de um Estado, podese | |
facilmente defender que futuras gerações se preocuparão | |
pouco com a alocação de recursos públicos e sua utilização | |
105 | através de políticas públicas, importando-se mais com, v.g., |
valores espirituais, em detrimento dos valores materiais. | |
A fraqueza dessa tese está no fato de ser ela, meramente, | |
uma suposição. Destarte, não há nenhum dado seguro | |
para afirmar que determinadas gerações futuras serão antimaterialistas | |
110 | ou que se importarão pouco com alocação |
de recursos destinados à promoção de políticas públicas. | |
Esquecer-se das gerações futuras, tendo em vista a possibilidade | |
de estas se tornarem antimaterialistas, é um exercício | |
de mera futurologia, exercício irresponsável, instituidor | |
115 | de compromissos que poderão ou não ser honrados pelas |
gerações futuras. | |
Portanto, a necessidade de as gerações atuais preservarem | |
recursos para as gerações futuras também se dá no que | |
tange aos recursos públicos. A Lei de Responsabilidade Fiscal, | |
120 | ao impor o regramento das contas públicas, racionalizando- |
as, compromete-se com esse objetivo, ao propugnar que | |
o controle orçamentário repercutirá a curto prazo – incidindo | |
sobre as gerações atuais – e a longo prazo – resguardando a | |
viabilidade fiscal do Estado para as gerações futuras. | |
125 | (...) |
A função da responsabilidade fiscal, como já dito, é de | |
mero meio. É o conceito instrumento essencial para a atuação | |
do Estado moderno. Não mais se concebe uma atuação | |
estatal efetiva sem uma apurada reflexão sobre os gastos | |
130 | públicos, seus limites e sua aplicação. |
As alternativas atuais para a construção de uma economia | |
sólida e menos suscetível passam necessariamente pelo | |
controle de gastos públicos. Alguns países desenvolvidos, | |
tendo em vista essa perspectiva, buscaram limitar gastos e | |
135 | muitas vezes editaram leis para esse fim. É impossível, na |
atualidade, visualizar qualquer Estado que se proponha ao | |
desenvolvimento sem um minucioso projeto de controle de | |
gastos públicos. | |
Imprescindível é, pois, que toda a reflexão sobre a necessidade | |
140 | de um conceito de responsabilidade fiscal não seja |
perdida da vista dos administradores públicos, assim como | |
dos cidadãos. Somente assim, com a atuação de todos os | |
atores sociais, poder-se-á buscar o controle de gastos públicos, | |
visando a fomentar um crescimento econômico sustentado | |
145 | e garantidor, principalmente, dos direitos e garantias |
fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988. |
(Gilmar Ferreira Mendes, com adaptações. Disponível em: )
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