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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Texto de apoio: Lei de Responsabilidade Fiscal, correlação entre metas e riscos fiscais e o impacto dos déficits públicos para as gerações futuras




É certo que o advento da Lei Complementar nº 101, de

4 de maio de 2000, representou um avanço significativo

nas relações entre o Estado fiscal e o cidadão. Mais que

isso, ao enfatizar a necessidade da accountability, atribuiu
5
caráter de essencialidade à gestão das finanças públicas na

conduta racional do Estado moderno, reforçando a idéia de

uma ética do interesse público, voltada para o regramento

fiscal como meio para o melhor desempenho das funções

constitucionais do Estado.
10
(...)

Percebe-se que os dois temas [a correlação entre metas

e riscos fiscais e o impacto dos déficits públicos sobre

as futuras gerações] se vinculam à função prospectiva

da noção de responsabilidade fiscal. Enquanto o primeiro,
15
normalmente, se adstringe a situações futuras próximas, o

segundo vincula-se a situações futuras a longo prazo.

Portanto, além de a responsabilidade fiscal cumprir o

papel de proporcionar recursos de imediato a fim de que o

Estado realize as funções a que constitucionalmente está
20
vinculado, busca controlar a situação orçamentária a fim

de não comprometer nem o futuro imediato, muito menos o

futuro mais distante.

(...)

O estudo das relações entre déficits fiscais e seus efeitos
25
nas gerações futuras, ao menos na economia, não é

novo. Economistas clássicos e contemporâneos – dentre

eles David Ricardo, Martin Feldstein, James Buchanan e

Keynes – trataram do assunto sob perspectivas diferentes.

A reflexão jurídica sobre o assunto, contudo, não se tem
30
mostrado tão farta quanto aquela encontrada na economia.

Isso se deve, talvez, à associação feita ao tema dos efeitos

na utilização de recursos entre gerações especificamente no

campo ambiental – fortalecida, principalmente, após a década

de 70, quando o movimento ambientalista passou a formular
35
um discurso jurídico mais sólido, angariando adeptos

das mais variadas formações, em diversas partes do planeta.

Não pode, no entanto, a noção jurídica de efeitos entre

gerações se restringir à temática ambientalista. Obviamente,

ela possui contornos bem definidos naquela área, uma
40
vez que a própria ética ambientalista se funda na distribuição

de recursos entre gerações, alicerce para a sobrevivência

da própria humanidade.

Mas a alocação de recursos públicos através do equilíbrio

orçamentário também se mostra indispensável para
45
que as gerações futuras não sejam privadas de políticas

públicas propostas para serem minimamente efetivas, por

falta de disponibilização orçamentária suficiente. Isso leva a

crer que um dos objetivos da idéia de responsabilidade fiscal

é preservar a capacidade de financiamento de políticas
50
públicas para as futuras gerações.

Do mesmo modo que a ética ambientalista tem enfatizado

que os recursos ambientais não são inesgotáveis,

colocando-se a possibilidade de as gerações presentes virem

a exauri-los, privando as futuras gerações da própria
55
existência, não é menos razoável pensar que os recursos

públicos, também exauríveis, podem vir a comprometer o

desenvolvimento humano e a existência de grupos menos

favorecidos, carentes da ação estatal que vise a minorar as

desigualdades.
60
Percebe-se que os gastos públicos normalmente beneficiam

muito mais as gerações atuais que as gerações futuras.

Entre outros fatores, isso se deve ao fato de que as decisões

políticas tendem a visualizar um período estreito de tempo a

fim de se concretizarem. Natural – mas não ideal – que assim
65
seja. Tomadores de decisões políticas freqüentemente

ficam adstritos ao período de seus mandatos, uma vez que

percebem que os efeitos de suas decisões são sentidos mais

a curto que a longo prazo. Acrescente-se a isso o fato de

que muitos eleitores ignoram completamente a complexidade
70
das decisões, não percebendo ou relevando o limitado

escopo de tais decisões, não se prolongando no tempo e

beneficiando, primordialmente, as gerações atuais.

Pode-se argumentar, a contrário, com três situações.

A primeira delas é de que não se pode estabelecer uma
75
relação tão rígida no sentido de que déficits públicos terão

o efeito prolongado a ser sentido pelas gerações futuras.

Um exemplo disso seria o famoso “erro de Malthus”. Ao

afirmar que a produção de alimentos cresce em progressão

aritmética, enquanto o aumento da população se dá em
80
progressão geométrica, Malthus não levou em consideração

a evolução tecnológica como transformadora da capacidade

de produção de alimentos, pressupondo mesmo uma sociedade

estanque.

Nesse sentido, seria possível afirmar que poderiam surgir
85
novas formas de alocação de recursos que eliminariam

os déficits, não necessariamente impondo ônus adicionais

às gerações futuras.

Esse raciocínio baseia-se, contudo, numa falsa comparação.

Primeiramente, porque a alocação de novos recursos
90
nada tem a ver, em princípio, com o impacto tecnológico.

O avanço deste não acarreta necessariamente impacto positivo

daquela.

Um segundo fator diz respeito ao argumento de que a

existência de déficits públicos pode promover o desenvolvimento
95
nacional, o que a experiência brasileira não parece

confirmar.

O terceiro argumento contra a idéia de que déficits imporiam

ônus às gerações futuras é o de que não se sabe

qual será a postura das futuras gerações quanto aos bens
100
materiais. Uma vez que uma postura antimaterialista, já

existente na contemporaneidade, pode se disseminar para

uma grande parte da população dentro de um Estado, podese

facilmente defender que futuras gerações se preocuparão

pouco com a alocação de recursos públicos e sua utilização
105
através de políticas públicas, importando-se mais com, v.g.,

valores espirituais, em detrimento dos valores materiais.

A fraqueza dessa tese está no fato de ser ela, meramente,

uma suposição. Destarte, não há nenhum dado seguro

para afirmar que determinadas gerações futuras serão antimaterialistas
110
ou que se importarão pouco com alocação

de recursos destinados à promoção de políticas públicas.

Esquecer-se das gerações futuras, tendo em vista a possibilidade

de estas se tornarem antimaterialistas, é um exercício

de mera futurologia, exercício irresponsável, instituidor
115
de compromissos que poderão ou não ser honrados pelas

gerações futuras.

Portanto, a necessidade de as gerações atuais preservarem

recursos para as gerações futuras também se dá no que

tange aos recursos públicos. A Lei de Responsabilidade Fiscal,
120
ao impor o regramento das contas públicas, racionalizando-

as, compromete-se com esse objetivo, ao propugnar que

o controle orçamentário repercutirá a curto prazo – incidindo

sobre as gerações atuais – e a longo prazo – resguardando a

viabilidade fiscal do Estado para as gerações futuras.
125
(...)

A função da responsabilidade fiscal, como já dito, é de

mero meio. É o conceito instrumento essencial para a atuação

do Estado moderno. Não mais se concebe uma atuação

estatal efetiva sem uma apurada reflexão sobre os gastos
130
públicos, seus limites e sua aplicação.

As alternativas atuais para a construção de uma economia

sólida e menos suscetível passam necessariamente pelo

controle de gastos públicos. Alguns países desenvolvidos,

tendo em vista essa perspectiva, buscaram limitar gastos e
135
muitas vezes editaram leis para esse fim. É impossível, na

atualidade, visualizar qualquer Estado que se proponha ao

desenvolvimento sem um minucioso projeto de controle de

gastos públicos.

Imprescindível é, pois, que toda a reflexão sobre a necessidade
140
de um conceito de responsabilidade fiscal não seja

perdida da vista dos administradores públicos, assim como

dos cidadãos. Somente assim, com a atuação de todos os

atores sociais, poder-se-á buscar o controle de gastos públicos,

visando a fomentar um crescimento econômico sustentado
145
e garantidor, principalmente, dos direitos e garantias

fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988.


(Gilmar Ferreira Mendes, com adaptações. Disponível em:  )


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